domingo, 29 de julho de 2012

Sexo & Vida & Arte



Entrevista de Madonna a Elio Gaspari publicada na revista Veja em 25 de novembro de 1992.
Madonna interviewed by Elio Gaspari on Veja magazine, november,25, 1992.





Ela é assim e nunca pede desculpas

A artista mais famosa e censurada do mundo
diz que mostra a verdade e isto incomoda



Na enciclopédia Grolier a palavra Madonna aparece em 64 verbetes. Há a Madonna dos Rochedos, de Leonardo da Vinci, a da cadeira, de Rafael, a do Magnificat, de Botticelli. Todas são mencionadas uma ou duas vezes. Só Madonna Louise Veronica Ciccone, de Bay City, Michigan, conseguiu seis citações. O sucesso de seus discos só se compara ao de Elvis Presley, o de seus shows ao dos Beatles e o de seu último livro - Sex - ao de ...E o Vento Levou. Vendeu 500 000 cópias em uma semana, mais que todo o mercado editorial brasileiro em um ano.
Embalado num saco de plástico como se fosse uma peça de alta tecnologia e encadernado entre duas placas de metal como um convite de sauna sadomasoquista, Sex é um álbum com 327 fotografias de Madonna ou partes de seu corpo (todas). Já rendeu mais de 20 milhões de dólares e reabriu pela enésima vez a discussão em torno da má conduta da artista. Como sempre ocorre desde que ela começou a carreira, o debate será o prelúdio do próximo lançamento, o filme Body of Evidence - O Corpo da Prova -, no qual faz o papel de uma mulher que mata o marido rico (Willem Dafoe) usando o sexo como arma. Em janeiro, quando estrear, reabrirá o debate sobre má conduta. E assim ela continua no seu melhor papel: a mulher mais famosa do mundo. Para quem já passou fome e posou nua por 100 dólares, nada mau.
Rápida como um raio e fria corno uma tartaruga, conseguiu a proeza de Sex aos 34 anos, idade na qual a maioria das grandes modelos já mal consegue as páginas centrais de Playboy. Alimenta-se da inteligência de seus críticos. Ela transgride na exata medida que a mandam recuar. Disseram que exacerbava a própria sexualidade, exacerbou-a. Disseram que havia tintas sadomasoquistas em seus shows, fez um álbum em que perto da metade das fotografias tem couros, chicotes e mutilações. Criou um padrão-Madonna-de-escandalização. A cantora Sinéad O'Connor rasgou uma fotografia do papa e a atriz Sharon Stone fez-se fotografar de cuecas, com a mão na pélvis, como ela há três anos. Conseguiram alguma publicidade, mas pouco escândalo. Só Madonna consegue ser o que um articulista do The Washington Post chamou de "a doença social predileta da América". Só ela consegue estar nas livrarias pelada e ao mesmo tempo num trabalho onde se juntaram onze professores universitários para explicar "A conexão Madonna - política de representação, identidades subculturais e teoria cultural". Mesmo num trabalho acadêmico, com 336 páginas de textos e centenas de notas de página, não puderam faltar oito fotografias, numa das quais está seminua.
Miúda (pouco mais que 1,60 metro), Madonna trabalha como uma condenada. Malha o corpo duas horas e meia por dia: "Um inferno". Não tira férias há nove anos, mas em compensação acumulou algo como 150 milhões de dólares. Vive num mundo onde mistura deliberadarnente fantasias e trabalho. Houve uma época em que se fazia chamar de Daisy porque se apaixonou por uma personagem do romancista Henry James que transgrediu os códigos do século XIX e morreu de malária. Foi também Kit Mollesby, personagem de um romance baseado na vida de Jane Fowles, uma escritora lésbica e doida. Atualmente chaina-se Dita, de Dita Parlo, atriz alemã do cinema mudo que apareceu em Atalante, do diretor francês Jean Vigo.
Ela é uma traficante de desejos entre dois mundos. Um é o da barra-pesada do sul de Manhattan (e de todas as grandes cidades do mundo), onde ela entrou nua numa pizzaria para fazer uma das fotos de Sex. Para surpresa sua, não conseguiu chocar a clientela, apesar de a dona da casa ter soado um alarme chamando a polícia. Outro é o das livrarias elegantes da Quinta Avenida, onde os curiosos com caixa pagam 50 dólares por uma injeção de escândalo na veia. Para o primeiro dos mundos o seu tipo é comum, mas no segundo pagam-se milhões de dólares para ver num álbum o que vem a ser o cotidiano proibido da noite de uma cidade. Num desses mundos há pouca vergonha e pouco dinheiro. No outro há muita vergonha, muita curiosidade e muito medo. Enquanto eles existirem, Madonna viverá para sempre, cada vez com mais sucesso, mais dinheiro e mais inimigos.
Na festa de lançamento de Sex, num porão capaz de assustar o marquês de Sade, do qual ela escapuliu quando achou que a barra estava muito pesada, perguntaram-lhe qual será o seu próximo lance. Sua resposta foi típica da rapidez com que choca as platéias, inclusive sadomasoquista: "Vou ser mãe". Na verdade Madonna não tem a menor idéia do que poderá vir a ser. Poderia andar por Paris com um garotão amarrado na cintura, como fez a cantora Edith Piaf, ou morar num castelo da Escócia como o ex-beatle Paul McCartney. Que tal treinar para assumir a presidência da Disney? "Nenhuma dessas possibilidades me interessa."
Na quarta-feira da semana passada, envolta numa echarpe de plumas rosa e chupando um picolé vermelho, Madonna falou a VEJA.


VEJA - Você é a artista mais famosa do mundo e também a mais censurada de todos os tempos. Essa repressão destina-se a domesticá-la. Por que você não baixa a bola?
MADONNA - Eu sou censurada porque prefiro mostrar a verdade e a verdade incomoda. A idéia de me conformar não me passa pela cabeça. Faço o que eu quero e vou continuar a fazer. Os artistas não devem se conformar. Quer saber de uma coisa? Essa questão nem me preocupa.
VEJA - Você põe medo nas pessoas. Seu comportamento, sua sexualidade, sua nudez e até mesmo suas roupas amedrontam. Por quê?
MADONNA - Não sei, nem sou eu quem tem que saber. Eu faço minhas coisas a sério. Não sou eu quem tem que explicar a reação dos outros. As coisas que eu faço não são estranhas e eu sempre fui como sou. Nunca pedi desculpas, nem vou começar a pedir. Pelo contrário, não vou parar minha luta.
VEJA - E qual é sua luta?
MADONNA - Contra o racismo, o sexismo, a perseguição contra homossexuais, o preconceito, a ignorância.
VEJA - Na última frase do seu livro você diz que "muita gente tem medo de dizer o que quer e é por isso que eles não conseguem o que querem". Esse medo é o mesmo em todas as áreas da sociedade?
MADONNA - O mesmo, de alto a baixo. Há muita repressão, muita mistificação.
VEJA - Você não acha que há muita gente lhe rogando praga? De vez em quando circula o boato de que você está com Aids.
MADONNA - Acho que há muita gente querendo que eu dê um mau passo, de qualquer tipo. É gente que no fundo tem medo de mim e finge que pensa que eu vou morrer. Digo que fingem porque no fundo o que eles têm é apenas medo. Podem ficar esperando.
VEJA - Você vai morrer?
MADONNA - Eu?
VEJA - É.
MADONNA - Vou viver 300 anos.
VEJA - O que você acha da princesa Diana?
MADONNA - Eu tenho pena do que fazem com ela. Todo mundo pega no pé dessa moça. Ela não é uma artista, é uma princesa. Casou com um sujeito para ter e criar filhos. Carcaram-na de tal maneira que ela vive numa situação terrível. Tudo o que se escreve sobre ela é ruim, perverso. Deviam deixá-la em paz.
VEJA - Mas escreve-se sobre o que de fato acontece com ela.
MADONNA - Coisa nenhuma. Se fosse assim de vez em quando apareceriam notícias boas, dizendo que ela estava feliz. Nada. Só se vê coisa ruim, Isso acontece porque as pessoas têm uma vida ruim e querem achar ruindade na vida alheia.
VEJA - Quem? Os jornalistas ou os leitores?
MADONNA - As pessoas que ficam procurando desgraça na vida dos outros para compensar a própria infelicidade. Você sabe muito bem que notícia boa não vende jornal nem revista.
VEJA - Você diz que todas as revistas do mundo já publicaram mentiras a seu respeito. Dá para tirarmos algumas dúvidas?
MADONNA - Quais?
VEJA - Você sai de limusine pela noite pegando garotos no sul de Manhattan?
MADONNA - Mentira.
VEJA - Você já passou uma noite com Michael Jackson, os dois nus comendo pipocas e vendo vídeos à luz de velas?
MADONNA - Mentira.
VEJA - Você já foi sem calcinha a um desfile de modas de Jean-Paul Gaultier e sentou-se na primeira fila, com a saia levantada?
MADONNA - Mentira.
VEJA - Você é lesbica?
MADONNA - Mentira.
VEJA - Você gosta de apanhar, de levar tapas?
MADONNA - Verdade.
VEJA - Que sensações as palmadas lhe dão?
MADONNA - Não é da sua conta.
VEJA - Você diz que a sociedade americana perdeu o senso de humor. Quando foi que isso aconteceu?
MADONNA - Quando os puritanos desembarcaram do Mayflower, no século XVII. Essa sociedade nunca teve senso de humor e não o tem hoje porque não tem história. A América é uma coisa muito jovem e burra para chegar a ser engraçada. As pessoas pensam muito pouco em viver a vida. Passam muito tempo correndo atrás de falsas questões. Como é que você consegue desenvolver um senso de humor vivendo assim?
VEJA - A sociedade italiana é muito mais velha e lá você foi mais perseguida que aqui.
MADONNA - Em primeiro lugar na Itália há o Vaticano e as pressões da Igreja Católica. Não se engane: os italianos gostam muito mais da vida.
VEJA - Qual a percentagem de americanos que consegue viver direito?
MADONNA - É pequena, não passa de 20%.
VEJA - Por quais razões você acha que a sociedade americana vai mal?
MADONNA - Porque nela não se diz a verdade e porque as pessoas não se divertem, não vivem a vida com prazer. É um problema que começa na infância e vai adiante no processo educacional. As pessoas são educadas para terem medo de tudo. Há medo demais por aí.
VEJA - Você se diverte?
MADONNA - Muito.
VEJA - Se você fosse homem a baixaria contra seu trabalho seria a mesma?
MADONNA - Não posso saber, porque não sou homem, mas acho que seria bem menor.
VEJA - Quanto?
MADONNA - Digamos que ela seria um quinto do que é. É um palpite razoável.
VEJA - A obscenidade existe?
MADONNA - Existe e está diante das nossas caras. É o racismo, a discriminação sexual, o ódio, a ignorância, a miséria. Há coisa mais obscena que a guerra?
VEJA - No seu livro você diz que é Dita Parlo, uma atriz do cinema mudo francês. Quem é Dita Parlo?
MADONNA - É uma mulher que gosta da vida e da liberdade, uma persona, uma mulher fatal, uma fantasia.
VEJA - No seu próximo filme, Body of Evidence, você mata um homem de tanto levá-lo para a cama. A pancadaria contra Madonna já começou. Estão dizendo que as cenas de sexo e de masturbação vêm a ser dignas de uma estrela.
MADONNA - Devagar. Eu não mato ninguém. Sou acusada de matar. Ou melhor, sou acusada de provocar o ataque cardíaco que mata o sujeito. Eu acho que não foi minha culpa. Quanto à discussão das cenas, é uma conversa velha, mas ninguém disse que Marlon Brando não podia filmar as cenas de sexo de último Tango em Paris porque era um astro.
VEJA - No filme O Diabo no Corpo, do diretor italiano Marco Bellhocchio, a atriz holandesa Maruschka Detmers decidiu fazer sexo oral com um parceiro em cena aberta...
MADONNA - Grande cena.
VEJA - Pode-se esperar que você faça coisa parecida em breve?
MADONNA - Euuuu?
VEJA - É.
MADONNA - Nem pensar. Não vou fazer uma coisa dessas. Aliás, nem preciso. Eu sei representar que estou transando sem precisar transar. Aliás, será que para fazer o papel de uma assassina eu preciso matar o ator? O artista finge.
VEJA - Como se pode entender que as suas fantasias sexuais estejam cheias de couros, metais e chicotes e você diga que não faz sexo oral porque considera a situação humilhante para a mulher? A cena do filme Na Cama com Madonna em que você enfiou uma garrafa de água mineral na boca está na cabeça de todas as platéias do filme.
MADONNA - Eu disse isso?
VEJA - Disse, numa entrevista à revista Rolling Stone.
MADONNA - A cena da garrafa foi uma brincadeira. Eu estava simulando a prática de sexo oral. Era fantasia, não me leve a sério.
VEJA - O que você quer dizer em seu livro quando informa que tem um "falo na cabeça".
MADONNA - Eu não quero dizer nada, quem diz isso é Dita Parlo.
VEJA - Mas aqui nesta sala a única pessoa que se comunica com Dita Parlo é você.
MADONNA - Certo. O falo é associado à masculinidade, à força guerreira. Eu tenho essas características na minha cabeça, não preciso tê-las entre as pernas. A minha masculinidade é cerebral.
VEJA - Você gosta dessa masculinidade?
MADONNA - Gosto, assim como gosto da feminilidade.
VEJA - No seu livro há uma série de conselhos de sedução feminina: não ir para a cama nos primeiros cinco encontros, bom perfume, ligas e uma situação inesperada em cada ocasião. Que mais?
MADONNA- Olhar no olho sempre que possível. Tocar.
VEJA - Começando por onde?
MADONNA - Pelo rosto.
VEJA - No seu tempo de garota você não contava tudo o que fazia nem ao padre-confessor. Hoje você diz que ninguém sabe quem é Madonna nem ninguém saberá. Mesmo assim, há dez anos você achava que seria o que é hoje?
MADONNA - Há dez? Eu sou a mesma pessoa desde os 5 anos de idade.
VEJA - Qual você acha que foi o maior homem da vida de Marilyn Monroe: Joe di Maggio, Arthur Miller, John Kennedy ou Robert Kennedy?
MADONNA - Foi o pai dela.
VEJA - O que você acha de Marlene Dietrich ter tido um caso com o general George Patton, comandante dos tanques americanos durante a II Guerra, verdadeiro arquétipo do machão?
MADONNA - E por que não?
VEJA - Você gostaria de fazer o papel de Evita Perón. Não lhe constrange o fato...
MADONNA - De Perón ter sido um fascista?
VEJA - Ele fascista e ladrão, ela uma demagoga.
MADONNA- De maneira nenhuma. Ela é uma figura muito importante. Quando um personagem tem um lado ruim, isso não significa que deixe de ser fascinante. Evita Perón é um personagem fantástico. Muitas pessoas têm os seus defeitos e apesar disso não chegam a ser sequer interessantes.
VEJA - Em 1989 quando lhe entregaram o troféu de Artista da Década, você o lambeu. Pode-se esperar que algum dia na cerimônia de entrega dos prêmios da academia você lamba um Oscar?
MADONNA - Não me lembro desse caso. Quem será que me deu o título de Artista da Década? Bem, eu não lamberia o Ocear. Eu o esfregaria, para que ele beijasse o meu bundol.
VEJA - No seu livro há uma fotografia na qual você está numa numa pizzaria. Sua equipe teve que sair logo porque a dona chamou a polícia, apesar de a freguesia não ter dado muita importância à chegada da moça nua. Quando você entrou, o que achava que ia acontecer?
MADONNA - Eu achava que ia comer uma pizza.
VEJA - Mas mesmo em Nova York não é comum uma mulher entrar numa pizzaria só com sapatos de salto alto pretos.
MADONNA - Eu achava que ia ganhar uma pequena quantidade de pizza e uma grande quantidade de atenção.
VEJA - Por que você não foi à televisão?
MADONNA - Porque é chato. Você vê televisão nos Estados Unidos? É uma coisa chatíssima.
VEJA - O que você acha de Hillary Clinton?
MADONNA - Ela devia parar de pedir desculpas por ser uma mulher com uma carreira própria.
VEJA - Você começou a comprar quadros da mexicana Frida Kahlo, mulher de Diego Rivera, antes que ela se transformasse num ícone de feminismo e suas obras começassem a ser vendidas a mais de 1 milhão de dólares. Depois você disse que pretendia filmar a vida dela. O que você quer, libertar Frida Kahlo da vida atormentada que ela viveu ou quer vingá-la?
MADONNA - Quero mostrar o triunfo dela sobre o acidente que a levou a passar por dezenas de cirurgias e a ammarou a uma cadeira de rodas.
VEJA - Mas triunfo mesmo ela só teve depois de morta.
MADONNA - Pois quero mostrar isso também. A vida de uma grande mulher, seu sofrimento, sua glória.
VEJA - Imagine que você fosse Gregor Samsa, o personagem de Franz Kafka. Um dia você acorda e virou um inseto, talvez uma barata. O que você faria?
MADONNA - Primeiro eu ia procurar um lugar onde ninguém pudesse me pisar. Depois ia ver se achava outros insetos no pedaço. Ia procurá-los e acabaria encontrando-os. Então, a gente faria uma boa turma e iria se divertir.




Fonte: arquivos do site da revista Veja.

Nenhum comentário: